segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

Teantropia, o Mistério do Divino no Humano no Processo de Formação da Bíblia



O que vem a ser teantropia? Esse termo foi cunhado para descrever ou definir a natureza dúplice de cristo Jesus, como sendo verdadeiro Deus (Theós=Deus) e verdadeiro homem (ánthropos= homem).
O que se pretende dizer aqui é que, à semelhança da natureza de Cristo, a Escritura também é, quanto à sua própria natureza, verdadeiramente teantróprica, isto é, um livro ao mesmo tempo humano e divino. Em outras palavras, a Escritura constitui-se na Palavra de Deus em linguagem condicionadamente humana.
Contudo, não obstante pareça óbvia essa constatação sobre a Bíblia, na prática, e mesmo na teoria, muitos abordam a Escritura de modo não condizente. Na verdade, duas abordagens ao mesmo tempo antagônicas e extremistas com respeito à Bíblia tem sido considerada em sua interpretação. Se por um lado os fundamentalistas lêem a Bíblia apenas como livro de Deus, ignorando seu contexto histórico formativo e suas configurações sócio-culturais originais, os liberais,por outro lado, a vêem como um livro meramente humano, apenas um testemunho da fé de civilizações antigas, a saber, judaísmo (AT) e cristianismo (NT), sem nenhuma função normativa ou qualquer condição sobrenatural.
Vale lembrar que ambas as posições são extremistas e reducionistas. Reducionistas porque reduzem a Bíblia ora a um oráculo divino “psicografado”, ora a um mero documento histórico. Concomitantemente, ambos os conceitos em relação à Escritura estão corretos e incorretos. Estão corretos quando tomados de modo mutuamente complementar, e incorretos ao se excluírem reciprocamente.
Ler a Bíblia apenas como produto humano é reduzi-la a um mero produto do meio, é ignorar sua mensagem salvífica e normativa para a humanidade; é descrer de sua origem divina e de todas as importantes implicações que resultam disso. Por outro lado, considera-la apenas como livro de Deus é conceber uma espécie de “docetismo”[1] que ignora os condicionamentos históricos, sociais, culturais, econômicos e religiosos através dos quais nasceu e se formou a Bíblia. Reconhecer a configuração histórico-social-humana das Escrituras não é, necessariamente, negar a sua Revelação, antes é entender que essa mesma revelação se deu através da comunicação, com todas as suas idiossincrasias contextuais, e das experiências dos homens. Como bem colocou o biblista Raymond Brown, é o “mistério do divino no humano”. [2] Assim como Cristo Jesus é a encarnação de Deus na terra, na história e no homem, a Bíblia é a encarnação da mensagem de Deus no homem, pelo homem, com o homem e para o homem. É uma expressão cabal da imanência de Deus no mundo.
Mas assim como o mistério da natureza humano-divina de Cristo foi mal compreendida, mal aplicada e debatida, assim é com respeito à origem humano-divina da Palavra de Deus. O problema da natureza de Cristo originou excessos e equívocos sem conta quanto a como se deveria conceber a pessoa de Jesus. Isso fica claro a partir das diversas heresias cristológicas, tais como o arianismo,docetismo,adocionismo,etc. Assim como fora difícil para os antigos cristãos compreenderem que Jesus era Deus e homem simultaneamente, assim é hoje em relação à natureza teantróprica da Escritura. Para muitos a melhor solução parece ser o extremismo, isto é, reduzir a Bíblia a um livro apenas divino ou apenas humano. O fato é que tais posições não são e nem devem ser excludentes. A Bíblia é um livro humano escrito dentro de contextos históricos e humanos, numa linguagem humana e a partir dos condicionamentos e experiências de seus autores. Como bem observou Eduardo Arens, a inspiração bíblica não consiste numa “espécie de poção mágica que protege o escritor sagrado de todo contágio histórico e cultural que pudesse distorcer o caráter absoluto dessa palavra de Deus”.[3] Aprouve a Deus se encarnar na história a fim de revelar sua mensagem de salvação aos homens. Ao mesmo tempo a Bíblia é um livro de Deus – não obstante seus condicionamentos histórico-sócio-antropológicos, a Escritura se impõe à humanidade através dos séculos como uma mensagem transformadora de Deus aos homens. Desde suas profecias cumpridas até sua fantástica unidade, a Escritura comprova ser, no mínimo, um livro sobrenatural e normativo.
Portanto, uma vez que a concepção que temos da Bíblia ditará nossas interpretações da mesma, precisamos, analogamente à Cristo, conceber a Bíblia como “verdadeiro Deus” e “verdadeiro homem”. Como exegeta não posso ser indiferente à configuração histórica original da Bíblia, isto é, sua humanidade; mas como crente também não posso ser insensível à sua mensagem salvífica, isto é, sua divindade.
Prof.Denes Izidro

[1] Versão do pensamento gnóstico que negava a encarnação de Cristo – Cristo parecia humano, mas era exclusivamente divino.
[2] Brown, Raymond E. As recentes descobertas e o mundo bíblico.Loyola:São Paulo.pg.11.
[3] Arens,Eduardo.Ásia menor nos tempos de paulo,lucas e joão.Paulus:São Paulo.pg.23.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

Agraphos - As "Outras" Palavras de Jesus Cristo


Existem Palavras de Jesus Fora dos Evangelhos Canônicos?

· Sem dúvida, há palavras de Jesus fora dos Evangelhos canônicos e até mesmo de todo o Novo Testamento, como atestam as seguintes evidências.
· Primeiramente devemos considerar o fato de que os Evangelistas canônicos não tinham a pretensão de expor tudo o que Jesus disse e fez, mas tão somente fizeram uso daquilo que correspondia às suas diferentes perspectivas teológicas, moldadas por sinal com base nas exigências das comunidades destinatárias (cf.Jo.20.30s;21.25;Mc.1.21,22;4.1,2). Portanto, muitas palavras e atos de Jesus, não relatados nos Evangelhos canônicos, ainda nos são desconhecidos.
· Em segundo lugar, há ditos de Jesus no próprio Novo Testamento que não podem ser encontrados nos Evangelhos canônicos (cf.ITs.4.15,16;At.1.5,7,8;At.20.35[1]), portanto são ágrafos de Jesus em relação aos Evangelhos canônicos.
· E em terceiro lugar, como a tradição sobre os ditos e atos de Jesus fora transmitida inicialmente de forma oral e outros Evangelhos e escritos foram confeccionados para transmitir a tradição Jesuína, é de se esperar que haja de fato algo mais sobre Jesus e suas palavras fora dos Evangelhos canônicos. Sobre tal argumento assim se pronunciou Jeremias: “o número das tradições referentes às palavras de Jesus, que corriam de boca em boca no dilatado espaço eclesial, era tão grande que nossos quatro evangelhos não podiam englobar todas.....Deste modo se explica que ao lado dos nossos quatro evangelhos existia desde o princípio uma tradição extra-evangélica tão variada relativa a Jesus”.[2]


Onde Estão os Ágrafos de Jesus? – Fontes da Pesquisa

· Os inumeráveis ágrafos de Jesus estão preservados nas mais diversificadas literaturas cristãs, judaicas e islâmicas, como veremos a seguir, além de se apresentarem como variantes textuais entre os manuscritos do NT.
· No Novo Testamento: como já vimos, existem ágrafos de Jesus no próprio NT, proferidos pelo Jesus terreno (ITs.4.15,16;At.20.35) e pelo Jesus ressuscitado (At.1.5,7,8) e glorificado (At.9.4-6,10-12,15s;IICo.12.9).
· Nas Variantes Textuais dos Mss. dos Evangelhos: há palavras de Jesus em alguns manuscritos do NT que não aparecem em outros mss. dos Evangelhos; como exemplo disso temos os textos variantes de Jo.7.53-8.11;Mc.16.9-20 e Lc.6.5, onde se conta a história do homem que trabalhava no sábado.[3]
· Evangelhos e Escritos Apócrifos: em textos não-canônicos como o EvTomé, EvHeb, EvNaz, AtosPed e outros escritos apócrifos há muitos ditos atribuídos a Jesus.
· Pais da Igreja: uma das fontes mais ricas para o estudo dos ágrafos são, sem dúvida, os escritores cristãos primitivos até o ano 500 d.C.[4] Joaquim Jeremias enumera os seguintes escritores cristãos primitivos que preservam ágrafos de Jesus: Pápias ( por volta de 130 d.C.),IIClem (antes de 150 d.C.),Justino (morto por volta de 165 d.C.), Irineu (morto por volta de 200), Clemente de Alexandria (morto antes de 215), Tertuliano (aproximadamente 160-220), Hipólito (morto em 235), Orígenes (morto por volta de 253-254), Tratado do Pseudo-Cipriano,De duobus montibus (antes de 240), Tratado do Pseudo-Cipriano,De aleatoribus (por volta de 300), Lactâncio (por volta de 300), Alexandre de Alexandria (313-345), Eusébio de Cesaréia (morto em 339), Afraates (escreveu nos anos 337-345), Efrén (por volta de 306-373), Líber graduum (sírio), primeira metade do século IV, Dialogus de recta fide (século IV), Homilias pseudo-clementinas (entre 325 e 381), Simeão da Mesopotâmia (final do século IV), Epifânio da Judéia + (por volta de 315-403), Jerônimo (por volta de 347-420), Dídimo, o cego, de Alexandria (morto por volta de 398), Sócrates (historiador da igreja, morto depois de 439), Vita S.Syncleticae do pseudo-Atnasio (provavelmente do final do século V).
· O Talmude: segundo J.Jeremias há pelo menos duas passagens no talmude que trazem palavras de Jesus, todavia com fins depreciativos. [5]
· Autores Maometanos: há de fato inúmeras palavras atribuídas a Jesus Cristo em escritos do Islã. Estes em parte são ampliações ou modificações dos sinópticos, em parte ficções lendárias.[6]


Prof.Denes Izidro

[1] Não obstante, Vielhauer,op.cit.,pg.645,nota de rodapé nº1073, e Joaquim Jeremias,op.cit.,pg.69, entendem que esse dito foi atribuído a Jesus equivocadamente, pois é um provérbio greco-romano citado por vários autores.
[2] Jeremias,op.cit.,pg.22.
[3] Esse último ágrafo que se origina da tradição manuscrita variante está entre os ágrafos de nosso apêndice.
[4] Cf.Jeremias,op.cit.,pg.47.
[5] Ibid,pg.55s. Jeremias dá valor a uma dessas passagens por nos apresentar uma versão aramaica de Mt.5.17, possivelmente original.
[6] Vd.ibid.,pg.57. Jeremias cita um ágrafo maometano de Jesus: “Disse aos filhos de Israel: - Onde cresce a semente? – No pó da terra – Em verdade vos digo: a sabedoria somente pode crescer no coração que tem chegado a ser como o pó.”.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2007

QUEM PRECISA DE EXEGESE BÍBLICA? O PROBLEMA DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA E A EXEGESE


Prof.Denes Izidro1

O departamento da teologia responsável pelas questões relacionadas à interpretação da Bíblia é a Teologia Exegética. É neste campo que a problemática metodológica e filosófica2 da interpretação bíblica tem seu lugar. A Teologia Exegética, por vias da Hermenêutica, estabelece métodos, leis e/ou princípios através dos quais pensa-se compreender melhor o texto bíblico histórico. Metodologias de Exegese também são descritas por esse campo da teologia com fins à sua coerente interpretação. Mas é mesmo necessário uma metodologia pré-estabelecida para a interpretação de textos bíblicos? Se a resposta é “sim”, a pergunta é “porque?”. Tal pergunta nos servirá de condutor para a compreensão da problemática e importância da Exegese Bíblica.
Há de fato muita dificuldade a espera daqueles que pretendem ler a Bíblia aleatoriamente ou sem critérios proporcionais à sua natureza histórico-literária. Devido sua própria natureza e circunstâncias em que se formou, a Bíblia possui algumas barreiras que tornam sua interpretação no mínimo problemática ou até mesmo inacessível. Que barreiras são essas, então?

Barreira Histórica

A primeira barreira com a qual nos deparamos quando pretendemos interpretar a Bíblia é a barreira histórica. Ou seja, a Bíblia foi escrita ou formada em circunstâncias e épocas totalmente distantes e diferentes da nossa realidade de hoje. A Bíblia é, sem dúvida, um livro histórico, nascido e configurado dentro de matizes históricas específicas. Seu contexto histórico e destinatários originais são por nós muitas vezes desconhecidos quanto a sua natureza e problemáticas peculiares. Em outras palavras, a Bíblia não foi, do ponto de vista histórico, escrita para nós hoje do século XXI. Há um grande abismo histórico e cronológico entre nós hoje e os antigos autores bíblicos. A Bíblia é histórica, nasceu na história, pela história e para a história. Portanto, toda leitura bíblica precisa ser uma leitura histórica. Se não apreendermos a “cosmovisão” do período histórico em que a Bíblia nasceu e se formou, pagaremos o preço de não compreende-la correta e/ou abrangentemente.

Barreira Sócio-Cultural

Além da barreira histórica, nos deparamos também com o que podemos chamar de barreira sócio-cultural. Esta diz respeito ao mundo social, econômico, político e religioso em que se formou a Bíblia. É sabido que a bíblia se originou na estrutura sócio-cultural do Antigo Oriente Próximo, mais especificamente na Palestina, como seu cenário geográfico principal. As diferenças culturais entre Ocidente e Oriente são óbvias. Estamos diante de uma literatura antiga emoldurada dentro de um contexto judaico-helenista com suas mais ricas peculiaridades. A ignorância quanto às estruturas sociais e culturais da época e ambiente onde nasceu a Bíblia torna totalmente inviável qualquer aproximação à sua interpretação.

Barreira Lingüística

Como se não bastassem as dificuldades hermenêuticas alistadas até aqui, temos ainda o problema da linguagem peculiar da Bíblia. Trata-se da barreira lingüística. A Bíblia não foi escrita em nossa língua, mas em três línguas bastante arcaicas, a saber, Hebraico, Aramaico e Grego. Nossas traduções no vernáculo tornam o texto apenas acessível aos leigos, contudo, não podem jamais substituir os originais3. Entender a sintaxe original do texto bíblico possibilitaria uma maior compreensão do texto Sagrado. Além do mais, temos também que lidar com o problema da linguagem e estilos específicos com que os autores bíblicos escreveram seus textos, bem como os gêneros literários específicos que utilizaram na configuração de suas obras.

Metodologia Necessária

Outras dificuldades para a interpretação bíblica poderiam ser destacadas aqui, contudo, estas são suficientes ao menos para demonstrar o problema da sua interpretação e a conseqüente necessidade de uma Metodologia de interpretação que nos ajude a transpor cada um destes obstáculos.4 Pois fica óbvio, pela natureza intrínseca da própria Escritura, que sem a aquisição de pré-requisitos históricos e literários, relacionados à formação da bíblia, nos será impossível a sua correta interpretação. E é para a “solução”5 desse problema hermenêutico que surge a Exegese como uma ferramenta indispensável para a mais correta e precisa interpretação do texto bíblico. Por meio da Exegese Bíblica poderemos transpor estas barreiras e nos aproximar cada vez mais do sentido original-histórico das Escrituras. Seu uso e aplicação são por demais importantíssimos se quisermos prosseguir na carreira dos Estudos Bíblicos. A Exegese Bíblica nos levará através da história e cultura em que se formaram os textos da Bíblia;como também nos capacitará a compreender as estruturas e o funcionamento da linguagem bíblica, e desse modo nos colocar, o quanto for possível, em contato com o significado histórico do texto bíblico e a intenção autoral.
NOTAS

1Denes Izidro é professor e pesquisador nas áreas de Literatura Cristã Primitiva, Literatura Apócrifa e Pseudepigráfica do AT, Novo Testamento Apócrifo e Contexto Histórico-Literário,Língua,Literatura, Exegese e Teologia do Novo Testamento.

2Sobre discussões filosóficas a respeito da interpretação bíblica confira a importante obra de Ricouer: Ricouer,Paul.Ensaios sobre a interpretação bíblica.São Paulo: Novo Século.

3Há também um outro problema: o “problema textual”, o qual diz respeito a reconstrução dos manuscritos originais da Bíblia Sagrada pelo fato dos mesmos não nos serem disponíveis hoje, senão através de milhares de cópias e versões antigas. É tarefa da “Crítica Textual” reconstruir, na medida do possível, o texto original da Escritura Sagrada.Esse é, portanto, um outro problema ao qual tem de se ater qualquer estudioso sério dessa mesma Escritura.Para uma introdução à “Crítica Textual”, quanto à sua definição, metodologia e resultados, consulte a satisfatória obra de Parosch: PAROSCH,W.Crítica textual do novo testamento.São Paulo:Vida Nova,1993.

4Para uma discussão mais ampla sobre a necessidade da Hermenêutica e da Exegese bíblicas, consulte as seguintes obras: Fee,Gordon D.;Stuart,Douglas.Entendes o que lês?:Um guia para entender a bíblia com o auxílio da exegese e da hermenêutica.São Paulo:Vida Nova,1984.pgs.13-27.Fee e Stuart discutem sobre “A Necessidade de Interpretação” técnica do texto bíblico;SILVA,Moisés.Quem precisa de hermenêutica?.In: KAISER,Walter C.Jr.;SILVA,Moisés.Introdução à hermenêutica bíblica.São Paulo:Cultura Cristã,2002.pgs.13-23. Moisés Silva destaca a importância da hermenêutica/exegese de conformidade com a natureza “humana” das Escrituras;VIRKLER,Henry A.Hermenêutica:Princípios e processos de interpretação bíblica.São Paulo:Vida,1987.pgs.9-33.Henry Virkler busca demonstrar o que ele chama de “base teorética e bíblica da necessidade da hermenêutica”.

5O autor desse texto não ignora que mesmo a exegese bíblica científica, com todos os seus resultantes desenvolvimentos, não pode, nem tem podido resolver todos os problemas relacionados à interpretação bíblica. Na verdade, ainda há problemas complexos e “insolúveis” em alguns aspectos da interpretação, como, por exemplo, o problema da contextualização, da subjetividade do leitor/intérprete, das limitações de dados históricos sobre personagens, povos, comunidades e acontecimentos da Bíblia, a cronologia, a intenção autoral,etc.