segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Literatura Cristã Primitiva


Prof. Denes Izidro


Definição da Literatura Cristã Primitiva


Essa é a literatura que o cristianismo cria para si com os próprios meios, porquanto cresceu no chão e no interesse próprio da comunidade cristã, ainda antes de se misturar com o mundo circundante (Overbeck,p.36).
Isso não quer dizer que todas as suas formas são novas – com exceção quiçá dos Evangelhos – e, sim, que, onde a literatura primitiva faz uso de formas preestabelecidas (Apocalipse), ela recorre apenas a formas da literatura religiosa, enquanto ainda se mantém totalmente afastada das formas de literatura mundial profana existente.
Essa literatura cristã primitiva, portanto, é formalmente sui generis, no que diz respeito às convenções literárias seculares de seu tempo.


Delimitação da Literatura Cristã Primitiva


É preciso determinar o volume da literatura do cristianismo primitivo, isto é, ela tem que ser delimitada em relação à subseqüente literatura da Igreja Antiga. A pergunta é sobre se a literatura do cristianismo primitivo se desenvolveu para a literatura da Igreja Antiga, ou seja, para a literatura dos escritores eclesiásticos (a partir de meados do séc.II d.C.), de modo que se trate apenas da distinção de literatura mais antiga e mais recente; ou se cada uma das duas literaturas tem algo tão peculiar que se faz necessária uma delimitação e distinção entre as mesmas.Parece ser esse o ponto.
Franz Overbeck, em seu fomoso ensaio – “Sobre os Inícios da Literatura Patrística” (1882) - situa o começo da literatura da Igreja Antiga na apologética1, a qual faz uso de formas profanas e se dirige a não-cristãos; ele também define essa literatura como “literatura greco-romana de confissão cristã e interesse cristão”. 2
O desaparecimento das formas cristãs primitivas (mais do tipo sui generis), portanto, e a recepção das formas da grande literatura mundial indicam uma mudança fundamental da literatura cristã primitiva para a literatura dos Pais eclesiásticos.
Quanto à abrangência da literatura cristã primitiva, vejamos: Além do NT, temos os escritos dos chamados :
Pais Apostólicos3: Epístolas de Clemente de Roma, Epístolas de Inácio, Epístolas de Policarpo, Epístola de Barnabé, o Pastor de Hermas4, a Didaquê e Fragmentos de Papias e Hegésipo, preservados por Eusébio e Irineu.5
Depois temos os Livros Apócrifos do Novo Testamento ou Novo Testamento Apócrifo: Evangelhos Apócrifos, Atos Apócrifos,Epístolas Apócrifas e Apocalipses Apócrifos.6


Produção Literária Cristã Primitiva na Geografia de Seu Tempo


Sem dúvida, o cristianismo se origina do ministério de Jesus e das primeiras comunidades cristãs na Palestina, se propagando depois para as regiões da Síria e do Egito. Não obstante, sua literatura mais importante desenvolveu-se nas culturas urbanas do Mediterrâneo Oriental, principalmente em Antioquia e nas cidades da região do mar Egeu. E é com base nessas regiões geográficas que têm lugar a produção literária do cristianismo primitivo, sempre com vistas à experiência e as necessidades das comunidades cristãs.


Objetivos do Estudo da Literatura Cristã Primitiva


Mostrar como surgiu a atividade literária dos primeiros cristãos e de que modo os livros refletem a particularidade de seus autores e as condições da época de sua redação.
Abordar o Novo Testamento antes como parte da Literatura Cristã Primitiva, situando-o assim em seu contexto literário e histórico-eclesiástico, para que depois de sua compreensão histórica o possamos compreender teológica e canonicamente.
Conhecer e compreender o significado, motivação e contribuição da literatura Apócrifa do Novo Testamento para a história do cristianismo primitivo e, mesmo, para a interpretação dos documentos neotestamentários (especialmente os Evangelhos).
Descrever os escritos edificantes dos Pais Apostólicos com o fim de compreendermos melhor o ambiente de fé da igreja cristã primitiva e nos deixarmos também ser edificados por eles,como o foram também os primeiros cristãos.


Justificativa para o Estudo da Literatura Cristã Primitiva


Essa literatura reflete a doutrina e prática da igreja cristã primitiva, a qual, por sinal, é o terreno fértil onde são fecundados todos os livros do Novo Testamento.7 Sem dúvida alguma, nossa compreensão do Novo Testamento depende em muito de nossa compreensão das comunidades cristãs primitivas responsáveis pela sua produção.8
Além disso,por terem servido de modelo para os escritos cristãos posteriores,os gêneros literários do Novo Testamento podem ser melhor compreendidos,de caminho inverso,através do estudo e análise desses escritos.9
Os apócrifos permitem vislumbrar a existência de coleções muito antigas de logia de Jesus,de testimonia das Escrituras e/ou tradições orais e/ou escritas sobre Jesus e os Apóstolos.10
Nesse sentido, a contribuição histórica desses escritos para o conhecimento da igreja cristã primitiva é inegável.11


Notas
1 Apologia de Justino, O Mártir, por exemplo.
2 Overbeck,F.Über die Anfäge der patristischen Literatur,1882,Neudruck (reimpressão), Libelli XV,1966.
3 A expressão “pais apostólicos” surgiu no século XVII como designação dos presumidos discípulos de apóstolos, Barnabé, Hermas, Clemente de Roma, Inácio e Policarpo, quando as obras a eles atribuídas foram reunidas e publicadas juntamente com cartas e relatos. No século XIX a coleção foi ampliada com a recém descoberta Didaquê, Cartas de Inácio e fragmentos de Papias preservados por Eusébio e Irineu. A expressão “Pais Apostólicos” portanto não designa um antigo corpo de escritos, mas, sim, é um título editorial moderno, escolhido por falta de outro melhor, para uma compilação de abrangência variável de escritos e fragmentos dos séculos I e II d.C. Estes foram considerados inicialmente apostólicos devido sua suposta “ortodoxia” em oposição ao apócrifos.
4 “O Pastor de Hermas ocupa seu justo lugar nessa coleção, embora seja difícil determinar sua data exata” (Köester,p.13).
5 Não fazemos menção nesse elenco à importante Carta a Diogneto, uma vez que, embora seja frequentemente incluída na lista dos Pais Apostólicos, ela aparenta ser um tratado apologético posterior, talvez final do II século d.C.
6 Os apócrifos do NT são todos os escritos cristãos primitivos que não foram aceitos no cânon,não pertencem aos Pais Apostólicos e fazem alusão ao NT pelo conteúdo,gênero e identificação de autores neotestamentários.São verdadeiros desdobramentos literários, tradicionais e conteudísticos do Novo Testamento - “Re-escritura neotestamentária”.
7 Alguns dos escritos dos Pais Apostólicos, por exemplo, podem ter sido redigidos antes do final do I século, isto é, ainda dentro do contexto histórico formativo do Novo Testamento. Köester, por exemplo, afirma que “1 Clemente, a Epístola de Barnabé e as fontes inseridas na Didaquê foram compostas antes do ano 100 d.C.”.
8 O’Callaghan, José.A formação do novo testamento.Paulinas: São Paulo.p.25.
9 cf. BARRERA,Julio Trebolle.A Bíblia Judaica e A Bíblia Cristã – Uma Introdução à História da Bíblia.São Paulo:Vozes,1999.pg.202s.
10 BARRERA,op.cit.,pgs.285-86.
11 Paulo Siepierski (Siepierski,Paulo & Hinson,Glenn E.Vozes do cristianismo primitivo. Sepal:São Paulo) argumenta sobre a importância do conhecimento histórico sobre a igreja cristã primitiva para a resolução dos dilemas atuais da igreja com base na experiência da igreja cristã primitiva (p.15).

Introdução à Literatura Neotestamentária


Prof. Denes Izidroi

A aproximação exegética,e mesmo hermenêutica do Novo Testamento,de modo preciso e/ou adequado,a saber,condizente com o que era e pretendia ser, depende da compreensão e aceitação de alguns pressupostos fundamentais relacionados à sua natureza e contexto histórico-literário originador. A seguir,portanto,apresentamos algumas dessas concepções,as quais visam proporcionar ao leitor e perscrutador desse complexo canônico uma espécie de “chave de leitura de gênero”.

O Novo Testamento é Constituído por Documentos Circunstanciais

Nenhum dos livros do Novo Testamento é desmotivado, isto é, surgiu em circunstância motivadora neutra ou não-existente. Todos eles são “documentos pastorais” e, portanto, também circunstanciais. Foram escritos em resposta a uma situação real específica na vida da igreja cristã primitiva. O material epistolar constitui o principal exemplo disso, mas não o único – na verdade, até mesmo os Evangelhos, Atos e Apocalipse estão condicionados à uma situação específica da comunidade.
E é justamente pelo fato de terem sido escritos para responder a contingências específicas da igreja, que não podem ser tomados ou interpretados como verdadeiros tratados sistemáticos e completos de doutrina cristã. Em outras palavras, o “silêncio” do NT se deve não à ortodoxia, mas a falta de oportunidade. A teologia que compõe o NT é, portanto, como disse Ladd, uma “Teologia Acidental”. Resultado de acidentes e circunstâncias na vida da igreja primitiva que exigiam respostas pastorais. Se não fosse o acidente da celeuma corintiana sobre a Ressurreição, não teríamos I Co.15 tratando sobre o assunto. Se não fossem os judaizantes da Galácia, não teríamos a magnífica epístola de Paulo aos Gálatas. E assim por diante.
Existe uma “comunidade viva” por detrás dos documentos do NT – eles não se formaram em “mesa redonda” e nem foram reunidas suas tradições em um processo de “recorta-e-cola”.

O Novo Testamento é Constituído por Documentos da História

É equivocado ler o NT apenas como “livro de Deus” e “do céu”. O NT também é um “livro dos homens”, “do mundo” e “da história”. Os autores do NT escreveram seus escritos a partir de suas próprias experiências, sob sua cultura e estruturas sociais de sua época e contexto. Só nos será possível compreender o NT após compreendermos o contexto histórico formativo onde ele é concebido. O contexto histórico-social e religioso do NT são o ambiente de sua “fecundação” e precisam ser considerados cuidadosamente por aqueles que querem compreender estes escritos, pois surgem na história, da história, pela história e para a história.
O ambiente do Novo Testamento era constituído de dois aspectos distintos, mas intimamente relacionados, no que tange à vida do século I: Judaísmo e Helenismo. O Judaísmo abrange a vida, pensamento e produção literária dos judeus; tinha em Jerusalém seu principal centro e na Palestina seu campo principal de atuação. O Helenismo compreende os fatores e condições do mundo gentio, com o qual entrou em contato o cristianismo das origens. O denominamos “Helenismo”, porque a influência da cultura e língua grega em sua vida religiosa, social e intelectual era dominante. Pode-se dizer que ambos contribuíram para a formação do cristianismo, e conseqüentemente do NT, da seguinte forma: os judeus apresentaram dons extraídos de sua história e consciência religiosa, os gregos acrescentaram sua língua expressiva e seu intelecto e os romanos, um mundo organizado. Em outras palavras, o mundo do Novo Testamento era politicamente romano, culturalmente grego, socialmente pagão e religiosamente grego-oriental.

O Novo Testamento é Parte de Um Todo Maior e mais Complexo

A despeito do que a maioria dos cristãos hodiernos deve pensar, a Literatura Cristã produzida pela igreja primitiva não se restringe aos 27 documentos do Novo Testamento. 1 Antes, estes são apenas parte de um todo muito mais amplo e complexo de literatura cristã primitiva. Sem dúvida, o Novo Testamento constitui os primeiros escritos cristãos primitivos, os quais são produto das primeiras igrejas cristãs nos países do mundo mediterrâneo oriental, e também em Roma. Contudo, além desses escritos cristãos primitivos temos também inúmeros outros escritos, os quais pertencem ao mesmo contexto histórico do NT.2
Todos esses escritos, tanto do NT quanto da literatura cristã paralela ou imediatamente posterior a ele, nascem no contexto de expansão e desenvolvimento das comunidades cristãs primitivas, desde os seus inícios até a metade do século II d.C., quando outros gêneros literários cristãos tomam forma.3
O NT, portanto, precisa ser considerado à luz deste contexto literário cristão. O NT é tudo, em relação ao cânon; mas é apenas parte de um todo, em relação à literatura cristã primitiva.

O Novo Testamento é uma das Janelas do Cristianismo Primitivo

Mediante o NT tem sido possível mensurar significativamente os princípios de fé e culto da igreja cristã primitiva. Sua teologia e sua ética podem ser apreendidas com base nos escritos do NT. Neste sentido, o NT constitui numa das principais, se não a mais importante fonte para o estudo da igreja cristã primitiva. O NT é recipiente e depositário de muitas das tradições do cristianismo antigo; seus autores colecionam e editoram essas tradições para a edificação de suas igrejas.
Como os evangelhos não são criações livres de seus autores, mas compilações de fontes e de tradições cristãs orais, também as epístolas não devem ser vistas como produtos das mentes inventivas de pensadores teológicos criativos, mas como elaborações de vários e diferentes materiais tradicionais que eram correntes em Israel, no mundo helenístico-romano e especialmente nas primeiras comunidades cristãs.” Helmut Koester4

Notas

i Exegeta do Novo Testamento, professor e pesquisador nas áreas de Literatura Cristã Primitiva, Literatura Apócrifa e Pseudepigráfica do AT,Novo Testamento Apócrifo e Contexto Histórico-Literário,Língua, Literatura,Exegese, Teologia do Novo Testamento e outras disciplinas na área de Bíblia e seu contexto histórico-literário, na Faculdade Teológica Cristã do Brasil (DF).© todos os direitos autorais desta obra devem ser preservados. Pós-graduando em História do Cristianismo Antigo (UnB).
1 Embora apenas esses sejam de fato considerados canônicos.
2 Cf. Köester,Helmut.Introdução ao novo testamento – História e literatura do cristianismo primitivo.vol.2.Paulus: São Paulo.p.i.
3 Estudiosos como F.Overbeck (Über die Anfäge der patristischen Literatur,1882), argumentam que a literatura cristã posterior ao II século d.C. segue mais as convenções literárias profanas de seu tempo, enquanto que a literatura cristã primitiva é do tipo sui generis, em sua forma geral.
4 Köester,Helmut.Introdução ao novo testamento:História e literatura do cristianismo primitivo. vol.2. Paulus:São Paulo.pg.72.

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