Prof. Denes Izidroi
A aproximação exegética,e mesmo hermenêutica do Novo Testamento,de modo preciso e/ou adequado,a saber,condizente com o que era e pretendia ser, depende da compreensão e aceitação de alguns pressupostos fundamentais relacionados à sua natureza e contexto histórico-literário originador. A seguir,portanto,apresentamos algumas dessas concepções,as quais visam proporcionar ao leitor e perscrutador desse complexo canônico uma espécie de “chave de leitura de gênero”.
O Novo Testamento é Constituído por Documentos Circunstanciais
Nenhum dos livros do Novo Testamento é desmotivado, isto é, surgiu em circunstância motivadora neutra ou não-existente. Todos eles são “documentos pastorais” e, portanto, também circunstanciais. Foram escritos em resposta a uma situação real específica na vida da igreja cristã primitiva. O material epistolar constitui o principal exemplo disso, mas não o único – na verdade, até mesmo os Evangelhos, Atos e Apocalipse estão condicionados à uma situação específica da comunidade.
E é justamente pelo fato de terem sido escritos para responder a contingências específicas da igreja, que não podem ser tomados ou interpretados como verdadeiros tratados sistemáticos e completos de doutrina cristã. Em outras palavras, o “silêncio” do NT se deve não à ortodoxia, mas a falta de oportunidade. A teologia que compõe o NT é, portanto, como disse Ladd, uma “Teologia Acidental”. Resultado de acidentes e circunstâncias na vida da igreja primitiva que exigiam respostas pastorais. Se não fosse o acidente da celeuma corintiana sobre a Ressurreição, não teríamos I Co.15 tratando sobre o assunto. Se não fossem os judaizantes da Galácia, não teríamos a magnífica epístola de Paulo aos Gálatas. E assim por diante.
Existe uma “comunidade viva” por detrás dos documentos do NT – eles não se formaram em “mesa redonda” e nem foram reunidas suas tradições em um processo de “recorta-e-cola”.
O Novo Testamento é Constituído por Documentos da História
É equivocado ler o NT apenas como “livro de Deus” e “do céu”. O NT também é um “livro dos homens”, “do mundo” e “da história”. Os autores do NT escreveram seus escritos a partir de suas próprias experiências, sob sua cultura e estruturas sociais de sua época e contexto. Só nos será possível compreender o NT após compreendermos o contexto histórico formativo onde ele é concebido. O contexto histórico-social e religioso do NT são o ambiente de sua “fecundação” e precisam ser considerados cuidadosamente por aqueles que querem compreender estes escritos, pois surgem na história, da história, pela história e para a história.
O ambiente do Novo Testamento era constituído de dois aspectos distintos, mas intimamente relacionados, no que tange à vida do século I: Judaísmo e Helenismo. O Judaísmo abrange a vida, pensamento e produção literária dos judeus; tinha em Jerusalém seu principal centro e na Palestina seu campo principal de atuação. O Helenismo compreende os fatores e condições do mundo gentio, com o qual entrou em contato o cristianismo das origens. O denominamos “Helenismo”, porque a influência da cultura e língua grega em sua vida religiosa, social e intelectual era dominante. Pode-se dizer que ambos contribuíram para a formação do cristianismo, e conseqüentemente do NT, da seguinte forma: os judeus apresentaram dons extraídos de sua história e consciência religiosa, os gregos acrescentaram sua língua expressiva e seu intelecto e os romanos, um mundo organizado. Em outras palavras, o mundo do Novo Testamento era politicamente romano, culturalmente grego, socialmente pagão e religiosamente grego-oriental.
O Novo Testamento é Parte de Um Todo Maior e mais Complexo
A despeito do que a maioria dos cristãos hodiernos deve pensar, a Literatura Cristã produzida pela igreja primitiva não se restringe aos 27 documentos do Novo Testamento. 1 Antes, estes são apenas parte de um todo muito mais amplo e complexo de literatura cristã primitiva. Sem dúvida, o Novo Testamento constitui os primeiros escritos cristãos primitivos, os quais são produto das primeiras igrejas cristãs nos países do mundo mediterrâneo oriental, e também em Roma. Contudo, além desses escritos cristãos primitivos temos também inúmeros outros escritos, os quais pertencem ao mesmo contexto histórico do NT.2
Todos esses escritos, tanto do NT quanto da literatura cristã paralela ou imediatamente posterior a ele, nascem no contexto de expansão e desenvolvimento das comunidades cristãs primitivas, desde os seus inícios até a metade do século II d.C., quando outros gêneros literários cristãos tomam forma.3
O NT, portanto, precisa ser considerado à luz deste contexto literário cristão. O NT é tudo, em relação ao cânon; mas é apenas parte de um todo, em relação à literatura cristã primitiva.
O Novo Testamento é uma das Janelas do Cristianismo Primitivo
Mediante o NT tem sido possível mensurar significativamente os princípios de fé e culto da igreja cristã primitiva. Sua teologia e sua ética podem ser apreendidas com base nos escritos do NT. Neste sentido, o NT constitui numa das principais, se não a mais importante fonte para o estudo da igreja cristã primitiva. O NT é recipiente e depositário de muitas das tradições do cristianismo antigo; seus autores colecionam e editoram essas tradições para a edificação de suas igrejas.
“Como os evangelhos não são criações livres de seus autores, mas compilações de fontes e de tradições cristãs orais, também as epístolas não devem ser vistas como produtos das mentes inventivas de pensadores teológicos criativos, mas como elaborações de vários e diferentes materiais tradicionais que eram correntes em Israel, no mundo helenístico-romano e especialmente nas primeiras comunidades cristãs.” Helmut Koester4
Notas
i Exegeta do Novo Testamento, professor e pesquisador nas áreas de Literatura Cristã Primitiva, Literatura Apócrifa e Pseudepigráfica do AT,Novo Testamento Apócrifo e Contexto Histórico-Literário,Língua, Literatura,Exegese, Teologia do Novo Testamento e outras disciplinas na área de Bíblia e seu contexto histórico-literário, na Faculdade Teológica Cristã do Brasil (DF).© todos os direitos autorais desta obra devem ser preservados. Pós-graduando em História do Cristianismo Antigo (UnB).
1 Embora apenas esses sejam de fato considerados canônicos.
2 Cf. Köester,Helmut.Introdução ao novo testamento – História e literatura do cristianismo primitivo.vol.2.Paulus: São Paulo.p.i.
3 Estudiosos como F.Overbeck (Über die Anfäge der patristischen Literatur,1882), argumentam que a literatura cristã posterior ao II século d.C. segue mais as convenções literárias profanas de seu tempo, enquanto que a literatura cristã primitiva é do tipo sui generis, em sua forma geral.
4 Köester,Helmut.Introdução ao novo testamento:História e literatura do cristianismo primitivo. vol.2. Paulus:São Paulo.pg.72.
Bibliografia:
Baxter, J.Sidlow. (1985). Examinai as Escrituras. São Paulo: Vida Nova;
Carson, D.A., Moo, Douglas J., Leon Morris. (1998). Introdução ao novo testamento. São Paulo: Vida Nova;
Dautzemberg, J., Schreiner, G. (1977). Forma e exigencias do novo testamento. São Paulo: Paulinas;
Gundry, Robert H. (1981). Panorama do novo testamento. São Paulo: Vida Nova;
Ladd, George Eldon.(1980). Apocalipse introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova;
Moule, C.F.D. (1979). As origens do novo testamento. São Paulo: Paulinas;
Summers, Ray. (1972). A mensagem do apocalipse: digno é o cordeiro. Rio de janeiro: juerp;
Tenney, Merrial C. O Novo testamento sua origem e análise. São Paulo: Vida Nova;
Kümmel, W.G. (1982). Introdução ao novo testamento. Paulinas: São Paulo;
Lightfoot,Neil R.(1981).Comentário bíblico vida cristã – Hebreus. Vida Cristã: São Paulo;
Köester,Helmut.Introdução ao novo testamento: História e literatura do cristianismo primitivo.vol.2.Paulus:São Paulo;
Vielhauer,Phillipp.História da literatura cristã primitiva.Academia Cristã: São Paulo;
Broadus,David Hale.Introdução ao estudo do novo testamento.Hagnos:São Paulo;
Cullmann, Oscar.(1984).A formação do novo testamento. Ed.Sinodal: Rio Grande do Sul;
Elwell, Walter A. & Yarbrough, Robert W. (2002). Descobrindo o novo testamento. Cultura Cristã: São Paulo;
Ladd, George Eldon. (2003). Teologia do novo testamento. Hagnos: São Paulo;
Pack, Frank. (1983). Comentário bíblico: O evangelho de João. Vida Cristã: São Paulo;
Wilkinson, Bruce & Boa, Kenneth.(2000).Descobrindo a bíblia. Candeia: São Paulo.
Um comentário:
Prezado Prof. Denes Izidro,
Gostaria de obter seu e-mail para iniciar um diálogo com o senhor. Estou terminando um curso de quatro anos em teologia nos EUA onde me especializei em crítica textual do Novo Testamento. Estudei de baixo do Robert F. Hull (PhD - Princeton Theological Seminary - debaixo de Bruce Metzger) Estou voltando para Brasília em Junho e gostaria de conhecê-lo, pois tenho vontade de fazer um doutorado na UnB igualmente o que você fez. Para tando gostaria de alguma orientação sua.
Um grande abraço,
Julio Siqueira
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